Por Pe. Anderson Alves*
Sacerdote do Clero da Diocese de Petrópolis-RJ
Um dos temas centrais da obra de J. Ratzinger é a relação entre fé, verdade e amor. Ele o tratou durante toda a sua vida, inclusive são os assuntos principais das suas Encíclicas. A recente Encíclica Lumen Fidei, escrita por Bento XVI e Francisco, trata fundamentalmente da fé que ilumina toda a existência humana, inclusive a inteligência e a vontade, ou seja, as capacidades humanas de conhecer a verdade e de amar o bem.
Um dos textos mais importantes do magistério de Bento XVI foi certamente o discurso dele na Universidade de Regensburg, na Alemanha em 2006, entitulado “fé, razão e Universidade”. Naquela ocasião encontramos uma ótima síntese do seu pensamento, que vale a pena lembrar aqui.
Bento XVI parte da afirmação de que, para o cristianismo, não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. E nisso o cristianismo coincide com a filosofia grega e esse acordo não pode ser jamais anulado. Para o cristianismo, diferentemente da doutrina muçulmana, a vontade e o agir divinos estão vinculados com a sua razão. O Papa cita o pensador muçulmano Ibn Hazm que dizia que Deus, por ser absolutamente transcendente, não seria vinculado a nada, nem mesmo à sua palavra. Se ele quisesse, poderia inclusive mandar praticar a idolatrina.
Para o cristianismo bíblico, porém, Deus age sempre com o Lógos. De fato, o início do Evangelho de São João é uma modificação do primeiro versículo da Bíblia e afirma que “no princípio era o Lógos”. E “Lógos” significa razão e palavra, de modo que Deus age sempre com a sua razão e com sua palavra (o Filho). A razão divina é criadora e comunicável como razão. Para J. Ratzinger, essa é a palavra conclusiva sobre o conceito bíblico de Deus. No princípio era o Lógos divino e o Lógos era Deus. De modo que Deus é sempre racional e não pode jamais agir contra a sua natureza.
Essa compreensão bíblica nasce de um encontro providencial: o da Revelação bíblica com a filosofia grega. No Antigo Testamento, na passagem da sarça ardente, Deus tinha se revelado com o nome “Eu sou”, ou seja, o ser por excelência. Esse nome supera toda categoria e seria uma constestação dos mitos antigos sobre os deuses. O mesmo teria feito Sócrates na Grécia. O homem, então, rejeita os mitos e procura a Deus e a explicação de todas as coisas racionalmente. Aquele texto bíblico foi escrito na época em que Israel estava no exílio, ou seja, longe da sua terra e do seu culto. E para os povos antigos, os deuses eram locais, isto é, defendiam uma cidade ou um território. No exílio, Israel comprende que o seu Deus não é o deus de um lugar, mas o Deus Criador e trascendente é o Deus de pessoas: “Eu sou o Deus de Abraão, Isaque, Jacó”.
Com a rejeição do mítico e a afirmação da unicidade e racionalidade de Deus, nasce uma espécie de “iluminismo”. Na época da dominação grega sobre Israel (começando cerca do ano 300 a. C.), a fé bíblica assimilava o que havia de melhor no pensamento grego, como é expresso na literatura sapiencial tardia. Dá-se então o encontro entre a fé de Israel e o “iluminismo autêntico”: a razão filosófica. E a afirmação de que não agir com o Lógos é contrário à natureza de Deus é fruto da fusão da fé cristã e do pensamento grego, algo que não pode ser dissolvido, uma vez que ocorre já no final do Antigo Testamento e em todo o Novo Testamento, escrito em língua e segundo a mentalidade grega.
Na doutrina muçulmana e no final da Idade Média ocorre, porém, a convergência na afirmação de que a vontade de Deus pode ser independente da verdade e do bem. Isso é o chamado voluntarismo. A transcendência de Deus vem então excessivamente afirmada de modo que a natureza humana deixa de refletir a natureza de Deus. Nosso conhecimento da verdade e do bem não seria então um meio de se chegar ao conhecimento da natureza divina.
Contra isso, porém, a doutrina tradicional da Igreja afirma que nossa razão criada acede ao conhecimento da natureza racional de Deus. Ou seja, entre a criatura e Deus ocorre verdadeira analogia. Pela perfeição das criaturas pode-se conhecer a Deus. Ele não é um gênio maligno que se regozija em iludir a nossa razão e em dar-nos ordens arbitrárias. «O Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como lógos e, como lógos, agiu e age cheio de amor em nosso favor». Como consequência, o culto cristão deve ser um culto com a razão “logike latreía” (Rm. 12, 1), ou seja, um culto realizado de acordo com o Verbo divino e com razão humana.
E o encontro da fé bíblica com a filosofia grega foi algo único na história da humanidade. A esse patrimônio comum uniu-se o de Roma (especialmente o Direito) e esses três elementos – fé bíblica, filosofia grega, e Direito Romano – iriam formar o mundo ocidental. Desse encontro nasce e se nutre a Europa.
Na modernidade, entretanto, pretende-se romper a dita síntese. Procura-se a partir de então “deselenizar” o cristianismo. Para os reformadores havia uma sistematização da fé excessivamente condicionada pela filosofia e por isso a fé não se apresentava mais na sua pureza bíblica, mas como parte de um sistema filosófico. O adágio sola scriptura representa o ideal de purificar a fé, ou seja, libertá-la do seu vínculo com o pensamento metafísico grego.
Esse programa foi seguido pelo filósofo alemão I. Kant, que procurou limitar o alcance da razão para dar espaço à fé. Com isso a teologia deixava de ser considerada uma ciência, visto que a autêntica ciência ocuparia apenas da matéria matematizada e organizada pelas categorias do pensamento. Assim a fé estaria livre de todo vínculo racional e a razão auto-reduz o limite do seu atuar. A fé estaria baseada não na razão pura e científica, mas apenas na ciência prática, sem nenhum acesso à realidade.
Assim se deu uma auto-limitação moderna da razão. A razão ocupa-se apenas duma síntese de platonismo (cartesianismo) e empirismo, ou seja, da estrutura matemática da matéria, que a faz manipulável, e a sua utilização em vistas de resultados técnicos. Desse modo, a razão não mais se preocuparia em âmbito científico de Deus, objeto que não pode ser medido quantitativamente, nem manipulado.
Com isso o próprio homem vem reduzido. Torna-se incapaz de responder às questões últimas da sua vida, às que ultrapassam o âmbito quantitativo: “de onde venho”, “para onde vou”, “quem é Deus” e “como devemos nos comportar”. Se por um lado, o homem torna-se a única medida de si mesmo, por outro, se faz incapaz de encontrar um sentido pra sua vida e regularizar a vida social.
A conclusão de Bento XVI é que se deve alargar o conceito moderno de razão e do seu uso. A fé e a razão devem voltar a estar unidas de uma forma nova. Isso significa que não se pode voltar a uma época pré-iluminista, rejeitando as justas convicções da Idade Moderna. Tudo o que é válido em cada época deve ser reconhecido e aceito. O cristianismo fez isso sempre e a fé cristã não é algo do passado, mas do presente e do futuro. A teologia, por sua vez, não é apenas uma disciplina história, objeto de uma espécie de arqueologia do saber, mas é a ciência da razão humana que investiga os conteúdos da fé. Assim ela deve ter lugar nas Universidades e colaborar para o diálogo entre as ciências e culturas.
* Padre Anderson Machado Rodrigues Alves é sacerdote do clero da Diocese de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Doutorou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma. Atualmente é Vice-Reitor do Seminário Diocesano de Nossa Senhora do Amor Divino e Colaborador dos sites Presbíteros e Zenit.
* Padre Anderson Machado Rodrigues Alves é sacerdote do clero da Diocese de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Doutorou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma. Atualmente é Vice-Reitor do Seminário Diocesano de Nossa Senhora do Amor Divino e Colaborador dos sites Presbíteros e Zenit.
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